(Aproximações ao receituário para a gestão do medo aquando da criação)
Falemos da fértil rotação da carne,
da inelutável e generosa geologia dos
corpos
- o sonho do minério inicial –
Falemos da assustadora anunciação das
formas no tempo,
da sacra falibilidade dos motores teóricos.
- mãos rasgando dos vidros as chaves –
Invoquemos a louca gramática dos frutos,
a ébria fermentação do átomo, do seu
sangue.
A semente:
Crianças hibernando nas ruas, ou o medo
delas.
Sentir o coração pesando toneladas
nas laterais da garganta:
Paredes que são nas mãos a fechadura.
Desalojar a garganta
e desestabilizar a líquida orientação dos
mecanismos;
Apontar a ideia ao centro do peito.
Disparar.
Lei zero da termodinâmica:
dois sistemas em equilíbrio térmico com um
terceiro
estão em equilíbrio entre si.
aumentar bruscamente o lume do terceiro
sistema
e aguardar nos flancos os cristais.
É um ofício lento.
Exige do terror um medo de si próprio.
Exige algum terror.
Lamber dos olhos o excesso de cristal. Rir
de medo.
- o riso criou a costela, a sua
necessidade.
Incidir a atenção na inconstante desordem
dos sistemas.
Desequilibrar. Saber arder. Saber do corpo
as melhores lenhas.
Saber recuar e avançar as fogueiras.
Recusar um padrão térmico.
Retirar das crianças frias a energia.
Potenciar a transformação.
Reciclar o medo.
Transformar. Colocar problemas. Acender as
luzes por instantes. Ver.
Deixar o terror borbulhando ver-se a si
próprio.
Raspar na pele a resina que se vai libertando.
Injectá-la no osso. Fazer doer. Apagar a
luz.
Deixar o terror ter saudade de si. Deixá-lo
chorar.
Não saber. Semear confusamente.
Respirar o odor fecundo da sementeira
e destruir lentamente as simetrias.
Começar a amar o processo.
Chorar, se preciso, sobre os materiais.
Demonstrar comoção.
Dilatar a verdade. Esticá-la. Usar ferros
para escachar a verdade.
Levar à boca algumas pedras. Provar.
Lançar a matéria – o corpo – ao mar.
Aguardar o afogamento.
Não atribuir nomes. Assegurar a
inexistência de sexo.
Afogar: preencher com sal.
O sal rebentará por dentro os pequenos
olhos.
Deixar rebentar. Cegar. Desinfectar.
Parar um pouco as coisas rápidas.
Potenciar o amor ao movimento.
Fazer amar o movimento, lançar-lhe com
violência
alguma inacabada inocência. Trair.
Rectificar os níveis de entropia…
Baixar bruscamente a temperatura:
Enrijecer a massa. Deixar a energia interna
sonhar um pouco.
Adicionar fumo. Fumar por dentro. Poluir.
Fazer chorar, por dentro. Unir as
extremidades mais afastadas.
Iniciar a subida à temperatura absoluta.
Iniciar a desordem-mãe.
Lançar o vinho novo sobre a gema.
Enlouquecer os ferros.
Aumentar. Violentamente.
Aumentar o volume, a música. Cantar.
Iniciar a oração:
Abyssus
abyssum invocat…
Gritar. Amar o processo.
Amar matar e fazer viver a coisa.
Amar desequilibrar.
Rebentar! Levar à criança bela o seu belo
medo de si.
Dilatar. Esticar os conceitos até
rebentarem. Dissolver.
Dissolver tudo. Queimar.
Diminuir espaço para a reacção. Minimizar.
Implodir!
Acordar.
Retirar a casca. Emocionar-se.
Dizer: meu filho!
Cortar os arames, soprar o pó. Libertar.
Aceitar que, sedento, ele nos mate…
Não esperará de nós
mais que o renascimento.
(Tavira, 12/2013)