sexta-feira, 28 de junho de 2013

"Tela branca"




























Estou perante uma tela branca,
Seu fundo encoberto de branco,
Traços oblíquos, igualmente brancos,
Outro na horizontal, (igual)mente da mesma cor,
O suporte que serviria de argumento, foi roubado…

                        …Manifesta-se um poema voraz,
                        As vozes presentes entoam…
…e penetram no espaço esbranquiçado,
E, em sintonia com a música absoluta,
O som da própria imagem,
O cheiro a branco jasmim,
É real,
O silêncio verbal transfigurado em pura paisagem,
Realidade visual, fragmentária,
Vertigem lúcida…

Todas as cores estão presentes,
Nada foi capaz de as devorar,
Nem a ausência de cor criada pelo breu da noite.
A tela branca ainda aqui está:
Seu fundo encoberto de branco,
Traços oblíquos, igualmente brancos,
Outro na horizontal, (igual)mente da mesma cor,
O suporte que serviria de argumento, continua desaparecido…


Marco Mangas @ 27 de Junho de 2013

terça-feira, 18 de junho de 2013

fim de emissão

[chovia no sinal digital terrestre]
Soltem-se presos que as grades trovejam...
a Amnistia sofre de fome.
[muda de canal]
São questões morais que almejam
os Tablóides que já não consomes?
[fechavam-se jornais em massa]
Audiências que não querem guerras
Outras que as consomem feras...
Soltem-se os gritos de sangue!
Corram os passos de um morto!
[streamings, vídeos, streamin']

O pó levantado não seca,
o ferro queimado só não se dilui,
as lágrimas falsas de um espectador
que comprou o pensamento
mas que o não sabe ver...
[desastres no canal 5]
Os rios já podem desaguar.
Soltem-se as águas e quebre-se o mar
Corram os passos de um morto
Desligam a vida de acesso remoto...

[na tv, no pc, wc, kevlar vest]
Olhas para o televisor
Partilhas uma notícia pela manhã
...Mas que fazer dentro da tua casa?
As balas já não furam O teu ecrã…

Abyssus abyssum invocat

  
    Rezam os antigos que uma boa morte é morrer-se à mesma hora a que se nasceu. O ciclo fica fechado e consumado. Quando te contei isto, naquele final de tarde chuvoso no jardim público de Évora, notei a tua curiosidade. Disfarçaste, para que eu não tivesse notado que te agradara a ideia. Nem acredito que passaste os teus últimos instantes de vida atenta ao relógio, para que tudo se cumprisse.
   (...)
    Recordava talvez a minha infância quando saíste de casa sem a generosidade de uma palavra. Escutei a porta cerrar-se mansamente, como que receando a sua função. Fiquei olhando pela janela embaciada o teu lento afastar. Fundiste-te na neblina, incorporaste um tempo sem conjugação, uniste-te à desolação cinzenta do interminável asfalto.
    Esperei-te toda a manhã. A esperança no teu regresso guerreava com o receio de nunca mais te ver. Os cigarros ardiam em meus dedos. Um a um construíam uma névoa interna. Mas não. Tu não voltaste…
    Só mais tarde notei a forma como arrumaras o teu quarto. A cama feita a régua e esquadro. A secretária desocupada. Na mesa-de-cabeceira, uma folha dobrada em quatro acautelava uma frase escrita tremulamente: “estar perdido é somente encontrar o que não se estava à espera”. Fui eu quem te a disse. Não recordo o contexto. Recordo somente que confirmaste a ideia. Beijaste-me. Tu beijavas-me tantas vezes. Beijavas-me com os olhos humedecidos. Como se no teu íntimo soubesses já que não irias voltar. Eram assim os teus beijos: beijos de partida...
(...)

                                             (Cáceres, Dez. 2010)

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Um pretexto

Levámos anos a perceber isso, que a tua pele é activada por muito
mais do que um murmúrio, algo entre o que há de silêncio
no meu corpo e de grito no mundo que só eu conheço.
E as covas que em ti não covas mas concavidades,
e a vontade que em ti não vontade mas desejo,
e o amar que em ti não amar mas o sopro a que o meu corpo se sujeita
de cada vez que tu... Saímos de uma mesma possibilidade e tornámos
vago o mistério que nos envolve,
conhecêmo-lo,
mas vamos além do complexo que nos ordena.
E sabemos, os dois, sabemos,
como é simples o intrincado que nos arrasta pela vida fora
e nos impele a viver.
Mas a vida pouco sabe dos nossos sons,
das nossas crenças,
do vago que nos trouxe até ao que somos
nem conhece o pretexto que criámos apenas para que
nada se nos acerque.
Seria indelicado falar-lhe de tudo isso.







sexta-feira, 14 de junho de 2013

Um poema inacabado...
















São os versos que restam
De um poema inacabado,
Que nunca teve princípio,
Presença de estrofes,
Palavras…
De madrugada,
Acordou o seu fim,
Sem conclusão alguma,
Ausência de pontuações,
Adjectivos, pronomes,
Somente:
As pálpebras abertas
de um quadro pintado…



…De um poema que não dorme…






Marco Mangas @ 16 de Janeiro de 2013

quarta-feira, 5 de junho de 2013

As roxas

Três dias por semana, num tapete negro, emoldurado de amarelo-torrado com laivos verdes.
Salta-me aos olhos roxo! São pequenas pétalas roxas. Que estão ali, presas a um caule.
E, olhar sim olhar não formam ilhas de roxo.
E dançam a melodia, por vezes agreste e descompassada, de um pedaço de vento que alguém ali deixou.
Penso que podem ser perpétuas roxas. Elas nada assumem.
Não paro, ainda não cheguei. Mas vou ficando mais perto.
Ainda faltam todas as outras arvores, que parecem correr em sentido contrário ao meu.
E as duas ou três povoações que comungam do mesmo lençol de alcatrão, o mesmo que lhes encaminha visitantes e lhes aconchegou a partida de muitos inquilinos.
E questiono-me se aquelas pétalas, as que eram roxas, serão realmente perpétuas.