terça-feira, 18 de junho de 2013

fim de emissão

[chovia no sinal digital terrestre]
Soltem-se presos que as grades trovejam...
a Amnistia sofre de fome.
[muda de canal]
São questões morais que almejam
os Tablóides que já não consomes?
[fechavam-se jornais em massa]
Audiências que não querem guerras
Outras que as consomem feras...
Soltem-se os gritos de sangue!
Corram os passos de um morto!
[streamings, vídeos, streamin']

O pó levantado não seca,
o ferro queimado só não se dilui,
as lágrimas falsas de um espectador
que comprou o pensamento
mas que o não sabe ver...
[desastres no canal 5]
Os rios já podem desaguar.
Soltem-se as águas e quebre-se o mar
Corram os passos de um morto
Desligam a vida de acesso remoto...

[na tv, no pc, wc, kevlar vest]
Olhas para o televisor
Partilhas uma notícia pela manhã
...Mas que fazer dentro da tua casa?
As balas já não furam O teu ecrã…

Abyssus abyssum invocat

  
    Rezam os antigos que uma boa morte é morrer-se à mesma hora a que se nasceu. O ciclo fica fechado e consumado. Quando te contei isto, naquele final de tarde chuvoso no jardim público de Évora, notei a tua curiosidade. Disfarçaste, para que eu não tivesse notado que te agradara a ideia. Nem acredito que passaste os teus últimos instantes de vida atenta ao relógio, para que tudo se cumprisse.
   (...)
    Recordava talvez a minha infância quando saíste de casa sem a generosidade de uma palavra. Escutei a porta cerrar-se mansamente, como que receando a sua função. Fiquei olhando pela janela embaciada o teu lento afastar. Fundiste-te na neblina, incorporaste um tempo sem conjugação, uniste-te à desolação cinzenta do interminável asfalto.
    Esperei-te toda a manhã. A esperança no teu regresso guerreava com o receio de nunca mais te ver. Os cigarros ardiam em meus dedos. Um a um construíam uma névoa interna. Mas não. Tu não voltaste…
    Só mais tarde notei a forma como arrumaras o teu quarto. A cama feita a régua e esquadro. A secretária desocupada. Na mesa-de-cabeceira, uma folha dobrada em quatro acautelava uma frase escrita tremulamente: “estar perdido é somente encontrar o que não se estava à espera”. Fui eu quem te a disse. Não recordo o contexto. Recordo somente que confirmaste a ideia. Beijaste-me. Tu beijavas-me tantas vezes. Beijavas-me com os olhos humedecidos. Como se no teu íntimo soubesses já que não irias voltar. Eram assim os teus beijos: beijos de partida...
(...)

                                             (Cáceres, Dez. 2010)