porque para além de poesia experimental também existem experiências poéticas ... todas as actividades de escrita estão em igual alcance do homem como ele deveria estar com a natureza ... aequum : equidade, imparcialidade, igualdade
domingo, 28 de dezembro de 2014
pedaço de um livro por ser
Depois de meses de macas e máquinas, a pequena deixou-se ficar, às portas da maioridade, congelada para sempre numa concha de ingenuidade e inocência. A justiça nunca foi conceito que o pai reconhecesse. Inês chorava no seu ombro, clara de pele, 22 anos e olheiras de 80.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2014
poema de comboio #56
olá breve comboio, breve banco
pequeno momento de vida
artificial, mas vida
“não chegámos a tempo à paragem”
nem acendemos a luz
olá nuvem, olá húmido bocejo do dia
não me interessa escorregar
mas estou mentalizado para a última picadela de luz
os meus olhos, perante a ausência de caminho,
serão guiados pelas quentes faíscas do carril
olá fácil destino
eu não conheço outra realidade
para além da veloz escalada até à morte
mas conheço
pequeno momento de vida
artificial, mas vida
“não chegámos a tempo à paragem”
nem acendemos a luz
olá nuvem, olá húmido bocejo do dia
não me interessa escorregar
mas estou mentalizado para a última picadela de luz
os meus olhos, perante a ausência de caminho,
serão guiados pelas quentes faíscas do carril
olá fácil destino
eu não conheço outra realidade
para além da veloz escalada até à morte
mas conheço
quinta-feira, 23 de outubro de 2014
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
Tríade
-Eu
sou o teu filho, o teu pecado. Sou a tua timidez.
E
a mãe recebia-o nos braços magrinhos.
Não
era seu filho.
-Eu
sou o teu filho, o teu medo.
Sou
o teu olhar novo sobre o mundo. Eu sou o mundo.
Ele
não era o mundo, ela recebia-o.
Concedia-lhe
o peito. Amamentava-o.
-Eu
sou o teu filho, a tua carne nova ardendo no forno.
Eu
sou o teu fogo.
Ele
não ardia, ela recebia-o.
Mudava-lhe
a fralda. Aquecia-o.
-Eu
sou o teu filho. O teu predicado.
A
tua palavra feita carne.
Ela
recebia-o. Cantava até que adormecesse.
-Eu
sou o teu filho. A tua continuada esperança.
Sou
a fé no branco dos teus olhos.
Ela
recebia-o. Tapava-o com os cobertores. Velava-o.
-Eu
sou o teu filho, a tua salvação.
Sou
a tua carne extrema.
Ela
recebia-o. Tratava-lhe das feridas. Salvava-o.
-Eu
sou o teu filho, as tuas mãos futuras.
Eu
sou a tua memória.
Ela
recebia-o. Lavava-o. Dava-lhe a sopa à boca.
-Eu
sou o teu filho, o sangue novo da tua loucura.
Eu
sou a tua loucura nova. Sou a cura.
Ela
recebia-o. A mãe longa e densa abria-lhe a porta.
Emocionava-se.
-Eu
sou o teu filho. Sou o ferro vertido pelo teu peito duro.
Sou
a fundição. Eu, mãe, sou o teu pai!
-E
eu serei a tua filha. E recebia-o.
Ensinava-lhe
a tabuada e os planetas…
Nuno Mangas-Viegas
(Tavira, 29 de Janeiro de 2014)
[Editado a 25 de Maio de
2014]
segunda-feira, 6 de outubro de 2014
local
sobre os olhos de alguém
uma pedra no charco
localiza-me
diz-me onde corre a água
sobre os olhos de alguém
encharcados
uma agulha esperando
a entrada na pedra
sabes onde é?
continua o teu caminho
vou limpar os olhos
o sangue
alguém
uma pedra no charco
localiza-me
diz-me onde corre a água
sobre os olhos de alguém
encharcados
uma agulha esperando
a entrada na pedra
sabes onde é?
continua o teu caminho
vou limpar os olhos
o sangue
alguém
terça-feira, 13 de maio de 2014
Milésimo de segundo
Milésimo de segundo,
Precalço de lucidez,
Interrupção de inércia,
O copo derramou o seu estado
fruto de embriaguez...
Outro milésimo de segundo,
O estrebuchar de ambos,
O copo, o corpo...
A reacção hesitante dos passos,
Voz trémula e ofegante...
Outro milésimo de segundo,
outro, e outro e mais outro...
Sucessivo acto irreversível,
O álcool, o Ser, o não Ser,
o tempo, o consumo, a morte!
Outro:
Milésimo de segundo(...)
Miilésimo de segund(...)
Milésimo de segun(...)
Milésimo de segu(...)
Milésimo de seg(...)
Milésimo de se(...)
Milésimo de s(...)
Milésimo de (...)
Milésimo d(...)
Milésimo(...)
Milésim(...)
Milési(...)
Milés(...)
Milé(...)
Mil(...)
Mi(...)
M(...)
(...)
Marcelo Onnofre
Precalço de lucidez,
Interrupção de inércia,
O copo derramou o seu estado
fruto de embriaguez...
Outro milésimo de segundo,
O estrebuchar de ambos,
O copo, o corpo...
A reacção hesitante dos passos,
Voz trémula e ofegante...
Outro milésimo de segundo,
outro, e outro e mais outro...
Sucessivo acto irreversível,
O álcool, o Ser, o não Ser,
o tempo, o consumo, a morte!
Outro:
Milésimo de segundo(...)
Miilésimo de segund(...)
Milésimo de segun(...)
Milésimo de segu(...)
Milésimo de seg(...)
Milésimo de se(...)
Milésimo de s(...)
Milésimo de (...)
Milésimo d(...)
Milésimo(...)
Milésim(...)
Milési(...)
Milés(...)
Milé(...)
Mil(...)
Mi(...)
M(...)
(...)
Marcelo Onnofre
domingo, 4 de maio de 2014
Ars Poética
(Aproximações ao receituário para a gestão do medo aquando da criação)
Falemos da fértil rotação da carne,
da inelutável e generosa geologia dos
corpos
- o sonho do minério inicial –
Falemos da assustadora anunciação das
formas no tempo,
da sacra falibilidade dos motores teóricos.
- mãos rasgando dos vidros as chaves –
Invoquemos a louca gramática dos frutos,
a ébria fermentação do átomo, do seu
sangue.
A semente:
Crianças hibernando nas ruas, ou o medo
delas.
Sentir o coração pesando toneladas
nas laterais da garganta:
Paredes que são nas mãos a fechadura.
Desalojar a garganta
e desestabilizar a líquida orientação dos
mecanismos;
Apontar a ideia ao centro do peito.
Disparar.
Lei zero da termodinâmica:
dois sistemas em equilíbrio térmico com um
terceiro
estão em equilíbrio entre si.
aumentar bruscamente o lume do terceiro
sistema
e aguardar nos flancos os cristais.
É um ofício lento.
Exige do terror um medo de si próprio.
Exige algum terror.
Lamber dos olhos o excesso de cristal. Rir
de medo.
- o riso criou a costela, a sua
necessidade.
Incidir a atenção na inconstante desordem
dos sistemas.
Desequilibrar. Saber arder. Saber do corpo
as melhores lenhas.
Saber recuar e avançar as fogueiras.
Recusar um padrão térmico.
Retirar das crianças frias a energia.
Potenciar a transformação.
Reciclar o medo.
Transformar. Colocar problemas. Acender as
luzes por instantes. Ver.
Deixar o terror borbulhando ver-se a si
próprio.
Raspar na pele a resina que se vai libertando.
Injectá-la no osso. Fazer doer. Apagar a
luz.
Deixar o terror ter saudade de si. Deixá-lo
chorar.
Não saber. Semear confusamente.
Respirar o odor fecundo da sementeira
e destruir lentamente as simetrias.
Começar a amar o processo.
Chorar, se preciso, sobre os materiais.
Demonstrar comoção.
Dilatar a verdade. Esticá-la. Usar ferros
para escachar a verdade.
Levar à boca algumas pedras. Provar.
Lançar a matéria – o corpo – ao mar.
Aguardar o afogamento.
Não atribuir nomes. Assegurar a
inexistência de sexo.
Afogar: preencher com sal.
O sal rebentará por dentro os pequenos
olhos.
Deixar rebentar. Cegar. Desinfectar.
Parar um pouco as coisas rápidas.
Potenciar o amor ao movimento.
Fazer amar o movimento, lançar-lhe com
violência
alguma inacabada inocência. Trair.
Rectificar os níveis de entropia…
Baixar bruscamente a temperatura:
Enrijecer a massa. Deixar a energia interna
sonhar um pouco.
Adicionar fumo. Fumar por dentro. Poluir.
Fazer chorar, por dentro. Unir as
extremidades mais afastadas.
Iniciar a subida à temperatura absoluta.
Iniciar a desordem-mãe.
Lançar o vinho novo sobre a gema.
Enlouquecer os ferros.
Aumentar. Violentamente.
Aumentar o volume, a música. Cantar.
Iniciar a oração:
Abyssus
abyssum invocat…
Gritar. Amar o processo.
Amar matar e fazer viver a coisa.
Amar desequilibrar.
Rebentar! Levar à criança bela o seu belo
medo de si.
Dilatar. Esticar os conceitos até
rebentarem. Dissolver.
Dissolver tudo. Queimar.
Diminuir espaço para a reacção. Minimizar.
Implodir!
Acordar.
Retirar a casca. Emocionar-se.
Dizer: meu filho!
Cortar os arames, soprar o pó. Libertar.
Aceitar que, sedento, ele nos mate…
Não esperará de nós
mais que o renascimento.
(Tavira, 12/2013)
terça-feira, 22 de abril de 2014
DESLIZE & O POEMA (A)CORDA (ao vivo) - #4
Deslize & O Poema (A)Corda Texto de António Ramos Rosa ("A Espessura é Branca", in Círculo Aberto) e Nuno Mangas-Viegas ( "Intersecções com A. Ramos Rosa"), gravado no passado dia 12 de Abril na Estudantina de São Domingos de Rana. Composição musical de Deslize ( Hélder José e João Sousa)
sábado, 5 de abril de 2014
poema de comboio #35
porque é que a noite acontece?
aquece-me a alma como um aquecedor de halogéneo
o mau génio desaparece da órbita solar
restando a lua restante lua que parece ser meu guia
a gata corre, negra tal a noite, na tal noite todos os dias
e pendura-se nos cortinados, e lambe a ferida tratada,
e chora quando o aquecedor se apaga
um soneto intercalado fala comigo agora e enternece-se
ouvindo os miados de tal gata semestral
mas não tem nem alexandrino nem moral
ou lógica que à gata apeteça ou a mim me prenda atenção
e o soneto grita com a gata, que ora derruba o isqueiro para o chão
debaixo do colchão estão mais mil coisas que ali esconde
intercalada entre o halogénio e o génio pardo de gata negra.
Para mais informação vide foto da gata negra aqui.
aquece-me a alma como um aquecedor de halogéneo
o mau génio desaparece da órbita solar
restando a lua restante lua que parece ser meu guia
a gata corre, negra tal a noite, na tal noite todos os dias
e pendura-se nos cortinados, e lambe a ferida tratada,
e chora quando o aquecedor se apaga
um soneto intercalado fala comigo agora e enternece-se
ouvindo os miados de tal gata semestral
mas não tem nem alexandrino nem moral
ou lógica que à gata apeteça ou a mim me prenda atenção
e o soneto grita com a gata, que ora derruba o isqueiro para o chão
debaixo do colchão estão mais mil coisas que ali esconde
intercalada entre o halogénio e o génio pardo de gata negra.
Para mais informação vide foto da gata negra aqui.
segunda-feira, 24 de março de 2014
sábado, 22 de março de 2014
poema de comboio #31
A sua imaginação rasgava as névoas indecisas que, diante da inteligente maldade, a sua inexperiência despregava como uma máscara casta e límpida cheia de placidez. Estas explorações fizeram-na muito cedo mulher, preparando-a a compreender mistérios e umas meias frases que ouvia aos gatos-pingados, se passavam por ela
ALMEIDA, Fialho de. A Ruiva
estou de novo no mesmo banco
um comboio redondo
este é praticamente meu
o meu comboio redondo
um poema de comboio vem comigo
tu ouves-me falar da ruiva
e perguntas-me se será talvez
porém os
miseráveis portugueses
eu não sei
nunca li outros miseráveis
que não daqui
nesta mesma língua
há um poema dentro dos teus olhos
mas não é aquele que eu quero ler
há outros olhos que costumam ser o tu deste poema
e que me interessam muito mais
este é o meu comboio
e neste poema ainda sou eu que escrevo
espero e penso que sim
sexta-feira, 14 de março de 2014
Sem poesia...
Sem poesia...
As pedras de calçada soltam-se
deixando a terra despida e néscia,
Suas sombras aprisionadas
revoltam-se perante tal facto.
Os corpos embebidos em álcool,
Gélidos, inertes, arrojados
em seduzir a terra (sem rumo),
Num grito desesperante e vertical
em busca do seu vício.
Sem poesia...
As pedras de calçada reclamam
o silêncio,
O vazio
A folha de papel é apenas uma folha
pálida, invisível,
paradoxal a sua existência,
sua criação (sem rumo)
sem nexo, sem vício,
Sem poesia...
Marco Mangas @ 14 de Março de 2014
sábado, 8 de março de 2014
poema de comboio #29
eu pensei que nada temia a chuva quando se aflige a vizinha com o barulho dos homens de lixo
fazia uma gemada com as paragens do autocarro e pensava no fim do passe, passe por favor, social e lividamente.
coloquei um ponto final no percurso zangado e sem curvas aflitivas, preocupadas com o mau estado do piso. piso em mau estado, Cláudio
uma letra maiúscula na leitura do teu conto sem espaços sem parágrafos suficientes para uma pausa do andar coxo por entre as linhas do metro
os produtos incorrigíveis passam a correr com os putos na rua ejaculando sangue nas paredes inúteis. são modas distintas a de foder ou pintar uma parede e no entanto corres para o teu filho.
600 palavras são menos que 800 – seiscentas seis sentas oito sentas – para se sentar na mesa pousava o braço veloz e olhava com brilhos de pedra, furando o baile pós-medieval que na chuva se rasgava, mirava tudo na sua mira titânica do adeus opaco
fazia uma gemada com as paragens do autocarro e pensava no fim do passe, passe por favor, social e lividamente.
coloquei um ponto final no percurso zangado e sem curvas aflitivas, preocupadas com o mau estado do piso. piso em mau estado, Cláudio
uma letra maiúscula na leitura do teu conto sem espaços sem parágrafos suficientes para uma pausa do andar coxo por entre as linhas do metro
os produtos incorrigíveis passam a correr com os putos na rua ejaculando sangue nas paredes inúteis. são modas distintas a de foder ou pintar uma parede e no entanto corres para o teu filho.
600 palavras são menos que 800 – seiscentas seis sentas oito sentas – para se sentar na mesa pousava o braço veloz e olhava com brilhos de pedra, furando o baile pós-medieval que na chuva se rasgava, mirava tudo na sua mira titânica do adeus opaco
sábado, 1 de março de 2014
poema de comboio #13
passa-me sempre esta imagem e parece que soa sempre rápido demais. não houve problema algum, mas andei três dia correndo a cidade à espera de resolver tudo no mesmo dia. na mesma tarde aparece-me este deserto. até os jardins de entrada da faculdade estão amarelos. o meu sorriso dói-me. a cabeça está pesada e não consigo achar piada alguma ao humor cínico da sucessão de eventos num período de tempo contínuo.
eu existo e sei que existo porque me dói as costas e porque o peso de ser é tão sarcástico como a mesma existência. não há outra maneira de o dizer sem ser estando calado. não haverá outra possibilidade de me fazer compreender. os actos não chegam. as pedras não voam com a velocidade que eu desejaria para elas. custa tanto acartá-las num bolso toda a vida para ver que o futuro delas é mais incerto que o vidro que não conseguimos partir.
tanto tempo. tanta coisa gasta. tanta pedra polida e sapatos rotos e sem atacadores coerentes. não havia mais nada para comprar. não havia mais dinheiro na conta. conto então o meu segredo e chego à conclusão que estava tão bem guardado. que desperdício. de tempo. de tanta coisa gasta. sinto, sinto que sim. sei, mas não sei quando e porquê. acertaria em cheio nesse vidro se apenas a pedra não padecesse da mesma falta de vontade de viver.
um projéctil sem projecção. mas que merda. mas porque é que perco tempo? mas porque é que tenho tempo para perder? mas porque é que há tempo? mas porque é que esse tempo que existe não nos pertence e, mesmo assim, o perdemos sempre? querias o tamanho xxl? uma explicação "jumbo size" e uma certeza em tamanho americano número nove e um quarto. querias uma vida toda num catálogo de roupa, tendência de outono. percebe-se
in Diário Liberdade.org
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
regresso a casa
eu não tinha outro remédio.
deduzo que a porta me leve para outra divisão
divido-me na escolha de uma caminho
localizo a fonte da minha incerteza e espero, espero
espero e desespero mas nunca estou sozinho.
dou o passo, após pegar na maçaneta lentamente
e espreito a divisão que me espera.
tudo tão bem calculado
um exemplar corredor onde pedaços de parede pingam
trilham-me a passagem, deixam-me sem remédio
eu não tenho outra maneira de passar.
deduzo que esteja na altura de assumir um problema
mesmo que não seja meu, mesmo que nunca chegue a saber qual é -
qual era. desespero. mas não sou eu, é o nome.
eu não tinha outra maneira de resolver o problema
sem assumir o problema, descobrir o remédio.
no fundo de um corredor existem umas escadas
cada degrau é espelhado. cada espelho espera um passo meu
descendente, pausado. eu sigo caminho
e leio em cada espelho uma expressão facial,
um cruzar de pés, um rasgão nas calças,
um sentimento de perda, um problema.
distraio-me por momentos e tento chegar à porta
uma outra porta, rente ao fim das escadas.
na porta há uma pequena cruz vermelha
parecia uma caixa de primeiros socorros
mas não tinha remédio.
seria a última divisão
espero, abro a porta
espero, cada espelho espera também
nas minhas costas
espero, deduzo que a porta me leve para nenhuma divisão.
eu não tinha outro remédio.
deduzo que a porta me leve para outra divisão
divido-me na escolha de uma caminho
localizo a fonte da minha incerteza e espero, espero
espero e desespero mas nunca estou sozinho.
dou o passo, após pegar na maçaneta lentamente
e espreito a divisão que me espera.
tudo tão bem calculado
um exemplar corredor onde pedaços de parede pingam
trilham-me a passagem, deixam-me sem remédio
eu não tenho outra maneira de passar.
deduzo que esteja na altura de assumir um problema
mesmo que não seja meu, mesmo que nunca chegue a saber qual é -
qual era. desespero. mas não sou eu, é o nome.
eu não tinha outra maneira de resolver o problema
sem assumir o problema, descobrir o remédio.
no fundo de um corredor existem umas escadas
cada degrau é espelhado. cada espelho espera um passo meu
descendente, pausado. eu sigo caminho
e leio em cada espelho uma expressão facial,
um cruzar de pés, um rasgão nas calças,
um sentimento de perda, um problema.
distraio-me por momentos e tento chegar à porta
uma outra porta, rente ao fim das escadas.
na porta há uma pequena cruz vermelha
parecia uma caixa de primeiros socorros
mas não tinha remédio.
seria a última divisão
espero, abro a porta
espero, cada espelho espera também
nas minhas costas
espero, deduzo que a porta me leve para nenhuma divisão.
eu não tinha outro remédio.
quarta-feira, 29 de janeiro de 2014
o deserto
- Sou um corpo parado olhando, absorto, o deserto! dizia ele
eu não dizia nada. Ainda nada me rebentava nas mãos.
Era meio-dia. O sol queimava nos cabelos uma chama nova.
Caiam gotas gordas e frias sobre as costas ardendo,
caiam como caem os corpos de Homens maduros
violentamente...
corpos intactos e maduros de Homens caindo de algumas árvores.
era meio-dia.
Entravam rápidas nas costas,
acendiam por dentro os esconderijos, rebentavam
a sua luz nas hortas menos propensas.
Ele estava parado, absorto
partindo em pequenas porções para dentro das coisas do deserto.
- Sou um corpo parado, loucamente parado. dizia.
As coisas caiam-lhe nas costas vermelhas
entravam, como Homens maduros, violentos
caindo das árvores para dentro das costas. parecia doer.
Eu não dizia nada. e já nas mãos
cresciam sistemas, coisas do deserto complicando-se.
Entravam muito frias. ardia. fazia rir.
- Sou um corpo loucamente parado, complicando o deserto. dizia.
corpos inteiros caindo de árvores inteiras
duros por fora, com casca, caindo...
entrando, rebentando nos esconderijos a sua luz prometida,
iluminando as costas. uma chama nova.
Eu não dizia nada. e já tudo saia de mim, violentamente
contra as coisas do deserto. era meio-dia.
- Sou um corpo complicado, loucamente parado. Sou o deserto! dizia ele.
o deserto nada dizia.
(Nuno M.-V. Tavira: Jan/2014)
eu não dizia nada. Ainda nada me rebentava nas mãos.
Era meio-dia. O sol queimava nos cabelos uma chama nova.
Caiam gotas gordas e frias sobre as costas ardendo,
caiam como caem os corpos de Homens maduros
violentamente...
corpos intactos e maduros de Homens caindo de algumas árvores.
era meio-dia.
Entravam rápidas nas costas,
acendiam por dentro os esconderijos, rebentavam
a sua luz nas hortas menos propensas.
Ele estava parado, absorto
partindo em pequenas porções para dentro das coisas do deserto.
- Sou um corpo parado, loucamente parado. dizia.
As coisas caiam-lhe nas costas vermelhas
entravam, como Homens maduros, violentos
caindo das árvores para dentro das costas. parecia doer.
Eu não dizia nada. e já nas mãos
cresciam sistemas, coisas do deserto complicando-se.
Entravam muito frias. ardia. fazia rir.
- Sou um corpo loucamente parado, complicando o deserto. dizia.
corpos inteiros caindo de árvores inteiras
duros por fora, com casca, caindo...
entrando, rebentando nos esconderijos a sua luz prometida,
iluminando as costas. uma chama nova.
Eu não dizia nada. e já tudo saia de mim, violentamente
contra as coisas do deserto. era meio-dia.
- Sou um corpo complicado, loucamente parado. Sou o deserto! dizia ele.
o deserto nada dizia.
(Nuno M.-V. Tavira: Jan/2014)
quinta-feira, 23 de janeiro de 2014
Pretérito
Mais-que-imperfeito
o olhar dramaturgo daquele penhasco,
Seu pretérito totalmente desfeito,
O mar, o seu verdadeiro carrasco…
Mais-que-perfeito
Sua sombra em forma de casco,
Mais pretérito, mais conceito,
Mais, mais e mais…
…E menos-que-imperfeito,
Por mais que desfeito e refeito,
Nunca será: menos-que-perfeito
O seu pretérito.
Marco Mangas @ 23 de Janeiro de 2014
terça-feira, 14 de janeiro de 2014
a)
Escrevo-te porque não tinha
mais nada para te dizer. Não sei se reparaste como pisca a luz em standby,
vermelha, do televisor que nunca se ligou pela minha mão
Uma mancha de cinza no
lençol branco serviu de pretexto para um texto declamado em contextos desmesurados
pelo espaço. Escrevo-te para não ter de me ouvir, como um prato que se aquece
para não se comer frio
Somos todos da mesma matéria
e tudo bem, mas o fogo queima conforme o volume do corpo e o nível de tédio que
o ocupa. São chamas no olho do topo [áreas medidas com estranhos aparelhos da
geometria que não descrevo] São letras na chama do dia [a meteorologia não
responde às questões da vida]
Sem mais nada a acrescentar
despeço-me cordialmente.
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