sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Enunciação do corpo sobre os laranjais

Anoitece sobre os laranjais...
turva-se a composição do rosto
a definição
o corpo fecha-se, talvez em cubo.
Impressionam os céus, sem luzes
para guiar os exércitos
- a memória ergue espadas onde plantara as glicínias -
Um tímido rumor de camas
anunciando o rasgo do corpo...
és tu quem sai, vasculhando pelas chaves
apagando dos mapas o sul das tardes
és tu a jangada que se arreda no mar
sonhando já o deserto milagre das ilhas,
negando a urgência da linguagem e o amargo sarau.
Implacável, este trémulo desenho da lembrança
quando as visões exemplares se diluem em teorema
nas paredes. o corpo: erma península ardida.
Anoitece.
e sou pedra, o furtivo pasto
a dura duna sobre a nuca...
a demorada escadaria para o altar
onde estás.


Posfácio:

Esta é a mão, o seu milagre
digo mão como quem repete um tempo
talvez o cansado início de uma rota
o momento da órbita que regressa ao ovo
Digo mão segurando o tempo
como quem colhe do peito alguma calma
talvez uma pequena casa abrigando a chama do vento.

Digo passado e uma súbita raiva se levanta
um candeeiro a petróleo pela noite
talvez a divindade tocando o rosto.

Digo vida e ei-la, vivente
como quem evoca séculos e séculos de migrações
para dentro do segundo, este...
Digo pedra e terra e mar
e o seu sabor aporta nos lábios
as suas temperaturas - graus de febre -
na mão tomadas.
Digo estrelas e alma
e a lágrima surge
o milagre da evocação emociona-se...

Digo: anoitece sobre os laranjais...
e tudo regressa à solidão do corpo
uno, ermo
nu


  (Nuno Mangas-Viegas : Tavira, 7 de Setembro de 2013)

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Cinzas


Acesa ficou a noite,
Caída a sua chama:
rasgada, incandescente,
entrelaçada com as palavras…

As folhas suicidaram-se,
A expansão mutante
de criaturas reinventadas,
soltas, desinibidas...

-Cinzas. 



Marco Mangas @ 25 de Outubro de 2013

terça-feira, 8 de outubro de 2013

poema-vida zero

Posso descrever uma vida
num poema, com apenas quatros frases
e uma interrogação.

Perto da minha casa há um terreno
que nem sequer se cimentou.
Levou apenas com o pó em cima
e com o tempo acinzentou.

E as ervas? Lutam como tu para comer.

domingo, 7 de julho de 2013

Promessas Inquebrantáveis (Sem Nexo 1)

Quem, tu?
Tu! Que vens do pó das coisas acesas e termelicantes!
De todas as coisas que se agarram e contornam, apareces tu.

Vais chover de novo numa curva familiar,
Boomerang autista de permanência; opaca e inatingível.
Vais ficar em pranto estático, um dolo roxo de perdões.

Vais... Vais para a puta que te pariu!
Era o que me faltava agora também, estrebuchar no meu lixo.
O teu é tão mais verde de inquietude e medo; tão mais saboroso.
Quero roer-te os traumas e lamber-te as marcas das pancadas;

E quanto às feridas (quantas todas foram):
verter o sal das minhas lágrimas em riacho,
etilizar-te o sangue de ontem, numa defunta propagação de vida:
- Belisco-te os olhos no sussurro chuvoso d'ontem.

Mas tem que ser sempre aqui, neste lugar de almas tuberculosas,
de marquesas caducas de brilhantismo
do anteontem que queima a pele bolorenta
que aquece e distrai o corpo magoado pelo vento.

E o que é preciso:
É ver no tempo todo o segundo;
É despachar na completude da sua passagem todas as horas - as outras;
É baralhar todos os caminhos cruzados da ausência;
É raspar da alma as sobras de ilusão.

Deixar uma desilusão calma elevar-se em forma de vontade,
Definhar em encolhimento confortável e fixar uma promessa de jura impossível:
"todos os prantos possíveis passarão por mim a flutuar,
para que possa tocar no chão apenas enquanto peso morto."

sexta-feira, 28 de junho de 2013

"Tela branca"




























Estou perante uma tela branca,
Seu fundo encoberto de branco,
Traços oblíquos, igualmente brancos,
Outro na horizontal, (igual)mente da mesma cor,
O suporte que serviria de argumento, foi roubado…

                        …Manifesta-se um poema voraz,
                        As vozes presentes entoam…
…e penetram no espaço esbranquiçado,
E, em sintonia com a música absoluta,
O som da própria imagem,
O cheiro a branco jasmim,
É real,
O silêncio verbal transfigurado em pura paisagem,
Realidade visual, fragmentária,
Vertigem lúcida…

Todas as cores estão presentes,
Nada foi capaz de as devorar,
Nem a ausência de cor criada pelo breu da noite.
A tela branca ainda aqui está:
Seu fundo encoberto de branco,
Traços oblíquos, igualmente brancos,
Outro na horizontal, (igual)mente da mesma cor,
O suporte que serviria de argumento, continua desaparecido…


Marco Mangas @ 27 de Junho de 2013

terça-feira, 18 de junho de 2013

fim de emissão

[chovia no sinal digital terrestre]
Soltem-se presos que as grades trovejam...
a Amnistia sofre de fome.
[muda de canal]
São questões morais que almejam
os Tablóides que já não consomes?
[fechavam-se jornais em massa]
Audiências que não querem guerras
Outras que as consomem feras...
Soltem-se os gritos de sangue!
Corram os passos de um morto!
[streamings, vídeos, streamin']

O pó levantado não seca,
o ferro queimado só não se dilui,
as lágrimas falsas de um espectador
que comprou o pensamento
mas que o não sabe ver...
[desastres no canal 5]
Os rios já podem desaguar.
Soltem-se as águas e quebre-se o mar
Corram os passos de um morto
Desligam a vida de acesso remoto...

[na tv, no pc, wc, kevlar vest]
Olhas para o televisor
Partilhas uma notícia pela manhã
...Mas que fazer dentro da tua casa?
As balas já não furam O teu ecrã…

Abyssus abyssum invocat

  
    Rezam os antigos que uma boa morte é morrer-se à mesma hora a que se nasceu. O ciclo fica fechado e consumado. Quando te contei isto, naquele final de tarde chuvoso no jardim público de Évora, notei a tua curiosidade. Disfarçaste, para que eu não tivesse notado que te agradara a ideia. Nem acredito que passaste os teus últimos instantes de vida atenta ao relógio, para que tudo se cumprisse.
   (...)
    Recordava talvez a minha infância quando saíste de casa sem a generosidade de uma palavra. Escutei a porta cerrar-se mansamente, como que receando a sua função. Fiquei olhando pela janela embaciada o teu lento afastar. Fundiste-te na neblina, incorporaste um tempo sem conjugação, uniste-te à desolação cinzenta do interminável asfalto.
    Esperei-te toda a manhã. A esperança no teu regresso guerreava com o receio de nunca mais te ver. Os cigarros ardiam em meus dedos. Um a um construíam uma névoa interna. Mas não. Tu não voltaste…
    Só mais tarde notei a forma como arrumaras o teu quarto. A cama feita a régua e esquadro. A secretária desocupada. Na mesa-de-cabeceira, uma folha dobrada em quatro acautelava uma frase escrita tremulamente: “estar perdido é somente encontrar o que não se estava à espera”. Fui eu quem te a disse. Não recordo o contexto. Recordo somente que confirmaste a ideia. Beijaste-me. Tu beijavas-me tantas vezes. Beijavas-me com os olhos humedecidos. Como se no teu íntimo soubesses já que não irias voltar. Eram assim os teus beijos: beijos de partida...
(...)

                                             (Cáceres, Dez. 2010)

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Um pretexto

Levámos anos a perceber isso, que a tua pele é activada por muito
mais do que um murmúrio, algo entre o que há de silêncio
no meu corpo e de grito no mundo que só eu conheço.
E as covas que em ti não covas mas concavidades,
e a vontade que em ti não vontade mas desejo,
e o amar que em ti não amar mas o sopro a que o meu corpo se sujeita
de cada vez que tu... Saímos de uma mesma possibilidade e tornámos
vago o mistério que nos envolve,
conhecêmo-lo,
mas vamos além do complexo que nos ordena.
E sabemos, os dois, sabemos,
como é simples o intrincado que nos arrasta pela vida fora
e nos impele a viver.
Mas a vida pouco sabe dos nossos sons,
das nossas crenças,
do vago que nos trouxe até ao que somos
nem conhece o pretexto que criámos apenas para que
nada se nos acerque.
Seria indelicado falar-lhe de tudo isso.







sexta-feira, 14 de junho de 2013

Um poema inacabado...
















São os versos que restam
De um poema inacabado,
Que nunca teve princípio,
Presença de estrofes,
Palavras…
De madrugada,
Acordou o seu fim,
Sem conclusão alguma,
Ausência de pontuações,
Adjectivos, pronomes,
Somente:
As pálpebras abertas
de um quadro pintado…



…De um poema que não dorme…






Marco Mangas @ 16 de Janeiro de 2013

quarta-feira, 5 de junho de 2013

As roxas

Três dias por semana, num tapete negro, emoldurado de amarelo-torrado com laivos verdes.
Salta-me aos olhos roxo! São pequenas pétalas roxas. Que estão ali, presas a um caule.
E, olhar sim olhar não formam ilhas de roxo.
E dançam a melodia, por vezes agreste e descompassada, de um pedaço de vento que alguém ali deixou.
Penso que podem ser perpétuas roxas. Elas nada assumem.
Não paro, ainda não cheguei. Mas vou ficando mais perto.
Ainda faltam todas as outras arvores, que parecem correr em sentido contrário ao meu.
E as duas ou três povoações que comungam do mesmo lençol de alcatrão, o mesmo que lhes encaminha visitantes e lhes aconchegou a partida de muitos inquilinos.
E questiono-me se aquelas pétalas, as que eram roxas, serão realmente perpétuas.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

o vinho da vida, é como se nascêssemos na ressaca da bebedeira que a vida deveria ser. como se acordássemos mais tarde, enjoados, adormecidos, ressacados desse vinho. entornámos o vinho da vida sem sequer nos embriagarmos e nem chegámos a perguntar porquê, nem como, nem nada. e embriagamo-nos apenas porque não nos embriagámos o suficiente. batemos à porta da taberna em hora tardia. a noite é larga para nós e espera apenas pelo dia que mostrará a deformidade dos rostos embelecidos pela escuridão. tentamos sempre encontrar qualquer coisa neste chão, nem que seja o copo cheio da aguardente que adormece a força de encontrar outra coisa qualquer. olhamos a nossa esfinge no espelho atrás do balcão, com desdém a ignoramos e pedimos o segundo, é só mais um, por favor. e viramos os olhos para a contemplação do nada, que fica no canto direito quando se entra. o canto direito olha também para nós e nós sabemos disso, estremecemos violentamente, vimos a nossa imagem pelos seus olhos, fundos de copos de vidro baço e destorcido, a verdade e a mentira, juntos. revelamo-nos como aparições num êxtase divino, ou nem tanto... tinto? não. hoje, apenas aguardente para o espírito, copo duplo. só tu sabias como a noite iria acabar mas nem por um momento decidiste repensar. chega!: que brindemos então na ressaca!!

Com que então, estamos de acordo

Perto de uma distância inalcansável –
globalização fértil e destemida.
Brincam connosco
os senhores que a dominam
e unem-nos pelo poder de uma língua.
Novas fronteiras de aço, coligam
actos de política e amor profundo:
um só mundo e um só capitão.

Contra fatos não há vestimentas
Contra factos não há atos
Contra estes ladrões não há solução

“Ortografe-me a vida também,
ponha em acordo toda a minha identidade”
Ao fim e ao cabo só voltarão a comunicar
quando se assinar novo contracto.

É música para o teu gira-discos
a nossa ameaçada lusofonia.



1/11/2010, Cáceres

aequum (errar é humano, o poema (a)corda)

“ÆQUUM
equidade”

Que cansaço o de ser um ser.
Tédio para alma; Monotonia do olhar vazio!
Quebrarei, sem nada mais, tudo…
Tudo aquilo com que me confronto,
para ter o conforto que procuro.

Sentir-nos-emos unos a certa medida,
e Encontraremos solução para tudo, e mais…
Sem querer, vamos colidir com o próprio Sol,
vamos ingerir o som da Explosão, da queda,
da Falta de Força com que as palavras são cuspidas
para o chão.

O Pó? Para que me preocupar com o pó
se um dia me tornarei tão empoeirado como ele mesmo?
Prefiro Soltar-me, quebrar Correntes,
partir o mundo em vários mares, Em que Navegue
sem rumo, sem Destino.
Vida!
Só Isso.



João Mendes de Sousa

17/03/2010, Montemor-O-Novo

porque, do álcool

amgi@s e companhei@s, quase 3 anos de AEQUUM. quase 200 poemas/textos.
desencanto do baú um dos poemas que gerou toda esta vontade imensa de escrever para ninguém, para um enorme nada, e para todos vocês também. O último de uma série chamada porque do álcool, de 2010. os últimos não são sempre os primeiros, isso é treta, mas são sempre prova de que uma destruição prevê automáticamente algo novo que nasce. sementes do caos... venham concluir esta coisa

VI – deus… (Conclusão)
Encontrei no céu,
um feixe de respostas.
Olhei-o junto às estrelas.
Mantive o olhar,
e a cabeça erguida.
Um deus cuspiu-me na testa,
afastando-me a solução.



*
João Mendes de Sousa

Fevereiro de 2010, Montemor-o-Novo

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Cooperativo

Porque é que não datas os poemas?
Porque é que os teus não têm título.
Ando a pé e de autocarro e de comboio.
Passei em todas as zonas apenas com um triciclo.
Com três rodas não chego a nenhum lado.
Talvez porque não saibas um deus.
Talvez porque não quero chegar a lado algum.

Quantos poemas tens?
Tens uma data deles, sem data?
Quantas rodas te chegam para não ires a lugar algum?!
Quantos sítios? Quantos sítios, quantos ciclos, quantos círculos, quantas voltas?
Quantos trilhos andados sem um Deus errante, quantas paragens de estação?
Quantos caminhos, de ferro, quantos metros de bilhetes, quantas horas de alcatrão?

Jõao Sousa e Hélder

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A síntese das coisas sintéticas

Escapa-se o objecto sobre uma distorção primeira
A energia original – substancialidade prima –
criou um eco que se escutou a si mesmo
caminho por si e em si caminhado
e para si criado numa condição imanente de esquecimento
Ressoa a constatação:
o encontro das paralelas dá-se no infinito
no infinito, nada sempre visto
convergem as coisas que se nos obrigam
a percorrer essas coisas mesmíssimas.
A dimensão de vitalidade,
halo que por excesso de sobreposição se nega a si mesmo,
constelação que de si para si se ausenta
torna-se-me equidistante, impossibilidade
em recusar a realidade da ilusão
A questão jamais será como fazer o corpo
mas, irremediavelmente, como ser o corpo
A síntese da imaginação – essa real virtualidade –
-tricot cognitivo auto contraditório –
põe-se agora em estado de coisa problematizada
num zero formal unificante e intensificador
da sua negação necessária.
E porque flutua sabe-se corpo
unidade sintética da apreensão
-num “como se” nunca “para se”
que desimpede e desobstrui o instrumento
para que este possa não ser como sempre esperou
Esta antinomia do efeito
- este não que é sim exactamente por sê-lo –
rasga o chão e abre fenda no céu
liberta, finalmente, a passagem para
o híper-orgânico que jamais o será
- excesso de não-si em si mesmo gera o que procura negar
desprendido de alegações verbalistas.



[Nesta torrente problematizadora
nesta guerra que as sensações se fadam em se relacionar e não ser a guerra
expansão predestinada porque inaudita
pouso ovóide a cabeça e adormeço.
Acordarei agora para o que me dizes…]


-Não dizes nada?
então, se me permites...



Constato possibilidades de discriminar viventes
Coisas que vivem, por assim dizer não dizendo
não disse vida, nem órgão nem ser
nada me o ditou
a coisa surgiu de tal forma, que tal forma se me escapou
Há algo de nuclear no êxtase sensorial
de captar existências por elas próprias
extintas de um todo,
desenforcadas de uma cadeia hierarquizada...
e há uma virtude soporífera
em escavar pelo umbigo de cada uma dessas coisas
que se pré-existem a si mesmas
expressões omissas do conceito determinado
Tudo luta por escapar à sua palpabilidade
tudo peleja por e contra o seu útero
por e contra o conceito que busca e de que se furta
compreender essa incompreensão
é meio caminho andado para voltar a reiniciar todo o processo novamente
Ao não estarmos predestinados a tais constatações
estamo-lo infinitamente mais do que se o estivéssemos
E tudo mergulha nesta intensificação da percepção,
da atenção-outra,
neste esquecer-me de mim, vector a vector,
para que ao acordar, possa cair a pique
de volta ao museu…



-É para estas merdas que dizes para vir ter contigo? Enfim.
Vá, hoje faço-te um desconto. Passa pa cá trinta paus?
-Mas percebeste ao menos o que te disse?
-Claro que percebi. Vá, trinta paus para cá... 
que a voz de Nerval também tem de comer.



(Évora, 4/12/2011)
nm-v


terça-feira, 21 de maio de 2013

poema de comboio #19


garagem
desvio para Tires, à direita
mais tarde… para o lado adverso
a avenida 1º Dezembro
mais pequena que uma artéria perpendicular
“até amanhã!”
que simpatia a do motorista

stop!
al berto, onde estás?
porque é que compramos as obras
se não cabem na mala?

464
estou perto de chegar a casa
até quando for casa
até quando houver estrada
passamos nas passadeiras
à mesma velocidade que tu
e tu não cabes na mala também…

agente de fidelidade…
algo me soa tão traiçoeiro
no teu letreiro branco
o viaduto
a garagem ao lado do viaduto
e da rotunda

pedra
esgotos
saídas de água
desvios para Tires
que engano o nosso?
este, aqui no lado adverso.


quinta-feira, 16 de maio de 2013

...


Olhava de lado. Desconfiava sempre da luz amarela dos candeeiros que atormentavam o quarto por entre os buracos do estore. Os camiões carregavam em simultâneo o ruído e as mercadorias - símbolos da distância duma nova aurora. Os sonhos tornavam-se autoestradas, e vagueava entre as portagens da alma e os postos de serviço que a despertavam para a vida.
Não tinha carro e sabia bem como andar entre os comboios e os autocarros da vila. Sentava-se ou ficava de pé numa das carruagens do metro... e olhava como só as carruagens à frente se moviam. A sua estava parada mesmo com o metro em movimento.
Os pensamentos paravam entre as estações, e as recordações faziam um jogo sujo entre o passado e o desejo de um futuro. Os frutos da sua imaginação cresciam nas árvores asfixiadas pelos tubos de escape, pelos bêbados que as mijavam e circulavam no próprio vómito e barulho. As festas internas da sua convicção estavam fechadas a um número específico de emoções, só algumas tinham entrada-livre.

A porta do autocarro abria em cada paragem - as velhotas entravam e atrapalhavam-se, contado trocos e pedindo desculpa ao poste fixo no meio do autocarro, convencidas de que iam contra alguém. A poesia nascia entre os prédio cada dia mais altos - versos cada dia mais baixos, lágrimas cada dia mais soltas.

Os candeeiros apagaram e o Sol acendeu o resto da casa. Era dia, e a noite não queria mais adormecer. Com esforço, olhando para os bilhetes pré-pagos, bebia um café e fumava o primeiro de muitos cigarros. Impressionantes, as figuras do fumo espelhadas na alma.

JS, http://relatourbanoalgp.blogspot.pt/

terça-feira, 14 de maio de 2013

poema de comboio #15


um poeta inconformado e uma noiva descalça

o percurso dos autocarros tem variado
não só as obras o obrigam
como o trabalho o manda

perdi o sapato subindo os degraus
quando o sonho é assim, alto
a queda dói sempre mais

uma noiva inconformada e um poeta descalço

um entorse da alma é incrédulo
mas a realidade parece tão baixa
que só no alto dá para sonhar

as paragens, quase sempre as mesmas
dão tempo para ver o caminho
segundos de pura felicidade

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Parede


Agulhas investigando na carne
procurando o coração lilás dos corpos
coisas que têm nome
e são leves como penínsulas.
Desarrumam-se as aparições
nas molduras de ouro,
formas que se furtam ao dedo
e carregam o odor visceral do sonho.
Na parede grita o coração da parede...
Corpos com estátuas dentro,
esticando o braço ao horizonte
- o ébrio braço, o horizonte –
procurando os bandos de aves marinhas
que são povos derrotados em terra
leves, agora, como folhas, deslizam sobre o vinho.
Do vinho ficou o nome
e a caixa de madeira para guardar os ossos
quando já não servem para marcar os quadrantes.
O longo pescoço das flores, as fogueiras
a lâmina quente cortando a cara
pelas rugas.
Subestimaste os anos e as estações
deitaste na cama o rumor das bússolas
- os torneados corpos das bússolas –
Subestimaste o norte, o leme e a voz...

A carne rija das paredes
frias, como o nome das coisas que são frias
fala devagar misturando dialectos
explicando a evolução das cores
das mais quentes para as outras
e justificando a monstruosa textura da cara
quando pronta a morrer
A casa está vazia. Mas há uma voz.
Há um canto maior, um batimento
uma vibração cíclica
...talvez uma palavra repetida até ser água.
Procuro-te.
Escavo com agulhas a parede
até ao osso, até à estátua.
Procuro-te.
Procuro-te...
                                                                                                                                                                                        nm-v

sábado, 27 de abril de 2013

não-poema

matamos o Pai que se diz poeta e fodemos a Mãe que se diz poesia!: eis um poema edipiano!! a tua teta descia pela chaminé e eu chupava peles, nervos, sangue, gorduras... enchia-se a sala de carnes jorradas de cima e chupávamos todos o leite, a água, o vinho, o mijo, o suco... Habemos Petisco! Irrita-me a poesia, irrita-me a tua tia, irritam-me todas as palavras acabadas em –ia... Irrita-me o Pingo-doce!! Fode-te Pingo-doce! mais as tuas melodias... Desculpa Pingo-doce. Basta! Chega de poesia! Venha o Pingo-doce! Não é por mal querida, mas o teu capricho existencial fode-me o juízo. Tu sabes quanta carne tens que seduzir, esquartejar, amar, esventrar, foder, comer, tu sabes quanto de mim tens que matar para que te oiçam cantar em êxtases divinos... mas, Puta, eu não vim aqui para morrer!

quinta-feira, 25 de abril de 2013

poema de comboio #14

[um feliz dia dos (es)cravos]


completo a folha com a vida



se está grávida, não fume
os dias têm já neblina de mais
vou ser optimista agora
demasiado. foi demasiado
toca a música assim,
baixa o volume do baixo
quando voas tens a sensação de liberdade?
não te preocupes. já passa
eu nunca aprendi a andar de bicicleta
a amália nunca me preencheu a alma
a mesa nunca me esteve vazia
não completamente
eco pistas usadas por centenas por dia
o campo é a saída para os inadaptados? fecha o jornal
e escuta a telefonia
a cacofonia
a esquizofonia
a telefobia
a cocafobia
a telefonia sem pilhas
a telefonia


segunda-feira, 15 de abril de 2013

Janelas-corpo ou a mentira


Janelas ardendo nas testas perfumadas
orquídeas e outras visões de mulheres
seios frios chamando luas
portais vertendo desejos
nas paredes que são rosas para os amantes,
copos rolando rua abaixo
procurando lábios ou seios ponteagudos,
As portas são folhas que são portas
onde mulheres envelhecidas
retocam maquilhagens para o adeus,
As fotografias são a realidade mentida
os candeeiros estão apagados
e não há lábios para beijar o fumo rápido
da noite,
não há seios erectos para abrir as portas
os frios perfumes das portas
que são as amantes da rua,
frias as folhas que são mulheres
penduradas nas paredes
desenhando, invertidas, as paixões,
Nos teus seios, vejo ardendo os lábios
e os copos, que são portais para a lua
Na calçada cai a janela ardida
ardido o torneado corpo da mulher.
 
Esqueço porque recordo
Recordo, porque existes na mentira de ti...


(25/01/2013)

sexta-feira, 12 de abril de 2013

a mesma música (C F G)

Vou usar os acordes mais simples
para dizer outra vez as mesmas coisas
Vou repetir as mesmas palavras
Porque por si só não dizem tudo

E porque ditas no teus olhos tornam-se lágrimas
E porque choradas p'los teus olhos formas as águas
Águas que correm junto à luz do Sol
dos mesmos olhos que apagam a lua.

________________________________
tempos de cantoria e música em Cáceres
momentos de clausura, saudade e composição
abraços a esse tempo e gente que cá está comigo agora e sempre

quarta-feira, 10 de abril de 2013

estas é que são o egipto

comem nas palmas da mão.
o passe social não é valido a partir de abril.
o trânsito permanece interdito

crianças educam crianças
e a contradição da regra é não poder andar

a evolução será não ler frases em vermelho
amiúde, os miúdos serão novos mapas astrais
do fututo. a couve voltará à terra.
gradeamento, grades brancas, apontamentos de um swing.
falta o ano?

Desvio ao acesso localizado.
De súbito, a contra-natura na vida
que nos emprestam os deuses
(esses filhos de uma grande deusa)
são nuvens que pedem um
copo de tinto
as nuvens pediram
para fumar um charro de erva

o índice pluviométrico mestrado pelas horas de pontal
prevê sangue caindo do céu. Celebremos a indisciplina
arranquemos dentes e falemos da vida dos raquíticos
dos mal-operados.

E porque não uma entrada de emergência?
Serás temivelmente o agora. o momento exacto, a
turbulência, buracos no alcatrão.
Experimenta fotografar a fábrica de perfil
e pede-lhe que sorria. A verdura está fora,
não aparece para o enquadramento da meia noite.
Já nem a água tem direito à opinião pública?

Somos meros pássaros. dentirrostros assustados
c/o folhear das horas de ponta.
Aponta... não esqueças de apontar os minutos também
chega cedo o sol e tarde para o exame.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Porta, a porta.


Tens uma porta?
Aquele fim que do outro lado é um começo, e o dentro e fora são apenas dois lados do mesmo objecto, que os separa?
Tens aquele som estridente de campainha, ou o do cuco, ou até do melro...?
Tens o chiar da porta? A tua porta chia?
Não tens uma porta?
Não tens um paradoxo que te separa da vida, da vida das outras pessoas, e que dele precisas para que a vida, a tua vida seja vida junto dessas pessoas?
É uma questão de atravessares. Estás ver?
As portas, assim como as passadeiras, sejam as vermelhas ou as outras listadas, com menos charme, atravessam-se.
Tens que ter uma! Onde for que queiras ir, tens que passar por uma, e se não fores também terás que passar por ou outra, e pode ser por isso que não vais, ou não queres ir.
Tens uma porta? Não te importa?!
Não tens o algo que tu não abres quando sabes que não é o carteiro, e muito menos abres quando é o contador da luz?
Como deixas passar a visita que esperas há muito, e a outra completamente inesperada que te trouxe uma prenda, mas que não cabe na porta?
Sinto muito.
O que fechas tu quando não queres deixar fugir aquela luz que é só tua, e o som dos teus versos inacabados, e o fumo do cigarro que não fumas, mas tens por companhia?
Queres uma porta?

sábado, 30 de março de 2013

A febre

A mão agrafada à rocha
de seda finíssima,
exasperando a sintaxe tépida de um beijo
uma lentidão grave
sobre o coração das folhas
encharcadas pela memória de si
enfeitiçando a longitude da promessa.
O cavalo selvagem, centopeia
deslizando pelo braço
estatiza-se perante as linhas
marcadas a roxo nos olhos.
Não passarás a pensamento
sem jurares que amas o álcool
e a feroz idade do tempo.
Respirarás os mansos territórios
e a lama das noites,
perfurarás os pequenos corações
das pequenas coisas a traço de pincel
a contra-cor, friamente.
Da queimadura, serás a febre
o suor das pedras, o granito nos dentes quebrado.
Acima e abaixo gigantizam-se as mãos
segurando a crina e a flor
no gelo das flechas e dos Astros.
Acima e abaixo o membro rubro
sonha o palácio e a estepe, e uma outra mão.
Não passarás sem o sangue
da promessa, o cálice e os lábios.
Não passarás sem a dolorosa exactidão dos ferros.
Para sempre, cravadas as lentas carnes
ao vento, ao assobio, às latejantes folhas,
O beijo será sempre dito,
os lábios sempre agrafados à febre,
mas nunca passarás a tempo...
Nunca a geometria dos corpos
será o idioma das árvores, vivas e atentas.
Relincha a madeira, exasperante.
a luz primeira sobre os pinheiros
empurra a besta para diante
pisando os frutos e o sal,
o granito mastigado
cai sobre o mel e as especiarias da tentação,
o sangue não cai ainda
e a rocha desliza a seda
sobre o braço artesanal e forte...
Não passarás sem o prumo
das portas recordadas...
Não passarás enquanto fores carne queimando...